Autora:  GRACIELA H. LÓPEZ                                    Tradução:  Raquel Mellman

Aquela vez eu não estava com vontade de dançar, pelo contrário, estava curtindo estar no salão e ver como os outros o faziam.  Às vezes isto acontece.

Ao meu lado sentou-se uma milongueira dessas que bailam fascinadas, revirando os olhos, seduzindo ao passar.  Ela estava feliz porque havia encontrado “seu dançarino” para esta noite, conforme me disse.

Chamavam-me a atenção porque juntos formavam uma figura especial, que deslizava em uníssono.  Dançavam pressentindo-se, como em código, como se as lembranças de suas vidas se juntassem por um momento.  Seguiam o ritmo de um tango de uma forma atraente e sensual.  A mulher não falava, mas com sua dança revelava segredos essenciais.

Reproduzo aqui um pouco desses segredos, mesmo sabendo não ser totalmente fiel.  Teria sido bom se vocês estivessem presentes ali, observando os dois, como eu fiquei.

Ela, com sua dança, falou assim:

Dançar com ele é como estar dentro de um chumaço de algodão, como abraçada àquele ursinho branco, macio e peludo da infância;  é encontrar a sintonia perfeita, o acorde exato no qual a vida soa pura, sem estridências nem dissonâncias.

É sentir-se escolhida, rainha por um momento, bela, ganhadora de um grande concurso; é entrar num lugar perfeito e reconfortante, sem miséria nem feiúra.  Como um café com leite quente no inverno, no horário tenso da madrugada.

Dançar com ele é algo desejado, embora “ele” vá trocando vez por outra de rosto, de pele, de corpo, de olhos;  é notar por um instante que estar ali faz sentido, é ter encontrado sem querer aquilo que nem sequer sabia que procurava.

É estar abrigada, docemente estreitada e contida nesse peito macio e generoso, pressionada contra essa barriga um pouco evidente talvez, porém cálida e vigorosa.  É sentir a pulsação exata de cada pisada, o chão como amigo que recebe as loucuras, as invenções dos pés cheios de idéias, cheios de força para revelar quem sabe que sonhos.

Dançar com ele é um grande invento, uma grande idéia, como aquela noite mágica dos Reis Magos, quando os sapatinhos ficavam cobertos de alegres pacotes.

Em algumas noites ordinárias e únicas, “ele” não existe.  Não está em ninguém.  Nem nos melhores.  Não importa, tem-se que esperá-lo com paciência, precisa-se pressentir seu rosto móvel, polivalente, em alguém, em ninguém, em todos.  Tem-se que esperá-lo atentamente, antenas ligadas, olhos intuitivos, relaxados.

Subitamente, “ele” está no meio da pista, nesses pés que giram como nenhum outro faria melhor, nesse dançarino que se detém e faz a pausa justa, exata, esperada.  Essa trégua que dedica a sua companheira, que enche sua dança de nobreza.  Esse silêncio do movimento, esse instante quieto e revelador.

Então, sabemos que nessa noite, é “ele” quem está ali, com seu perfil discreto e comedido.  Que não faz escândalo nem se faz ver demasiado.  Nessa noite, com segurança, é “ele”.

A milongueira continua dançando.  E eu a observava.  Ia tratando de entender, de captar seu mistério musical, sua mensagem intensa e muda.  Era como se ela me confessasse, me dedicasse algo.  A mim e às outras mulheres.  Eram bons conselhos, sugestões como estas:

Dancem, aceitem, recriem a dança de seu companheiro, mandem-lhe mensagens em silêncio, aproveitem esse tango para dizer o impossível, o que jamais nenhum homem entenderia, o que nenhuma mulher poderia dizer com palavras.

Passem-lhe segredos, fusas e colcheias, íntimos mistérios, envoltos em giros diligentes, em passos minuciosos.

Já que estamos condenados a não nos entender, homens e mulheres, com certeza Deus nos mandou o tango para aliviar esse estado por um momento.

Façam o que lhes der na telha, sem arrependimento, sem medo do que os outros vão dizer.  Divirtam-se tranqüilas, entregues, que para isso é o tango, esse festejo que põe o coração nas pernas e a cabeça no limbo.

Não liguem para os críticos.  São apenas seres que nunca tiveram a felicidade de dançar com paixão.  Por isso não entendem.  Não podem conceber que talvez toda a noite, ou toda a semana, fica colorida, encharcada, enfeitada, justificada por esses poucos minutos de glória, pela incrível força que alguém pode oferecer ao dançar um tango com amor.

A milongueira voltou ao seu assento, depois de despedir-se de seu companheiro com um sorriso.  As faces um tanto afogueadas, os olhos brilhantes.

Não voltei a vê-la.  Talvez nunca saiba tudo o que me ensinou, com sua dança, naquela noite.

 

Fonte:   Revista B.A. TANGO, setembro 2000, com autorização para reprodução no Boletim Rio Tango

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