Autora:  Graciela H. Lopez                                                                                 Trad.:  Raquel Mellman

Somente agora comprovei na própria carne e vi com meus próprios olhos como eram as coisas.

Quando adolescente, o que poderia dizer, se não fosse o mesmo que minha mãe?  Naquele tempo, papai me parecia o que era: um traidor e um mentiroso, um cretino que nos havia enganado – e durante quanto tempo!

Meu avô Pedro dizia que não era para exagerar, que não era para tanto, mas minha avó estava injuriada.  Um dia, enquanto me penteava carinhosamente, papai chegou.  Começaram a discutir e enquanto isso, ela nervosamente me puxava o cabelo.  Chorei, papai gritou e tudo era um dramalhão.  Nunca soube se gritava para minha avó ou para mim.

Depois, os ânimos se acalmaram um pouco.  Mamãe decidiu perdoá-lo e o aceitou novamente em casa, mas já não era mais a mesma coisa.  Ele voltava cedo e já não saía como antes, estava triste e ficava ali naquela hora antes do jantar, inerte, com os olhos vazios e desatento a tudo

Mas não contei tudo desde o início, por vergonha ou talvez porque agora, de repente, me veio a compreensão de tudo, de que o amo mais que nunca, só que já não posso dizê-lo, agora que sou adulta e ambos já não vivem mais.

O problema começou quando nossa vizinha em frente viu papai tomar o ônibus às nove da noite.  Sim, foi aí que tudo começou, porque papai trabalhava à noite como padioleiro no hospital Santojani.  E pela manhã, tinha outro trabalho, no correio.  Levantava-se muito cedo e deitava muito tarde, de modo que dormia uma boa sesta e ainda recordo o ciúme, o carinho com que mamãe cuidava para que eu fizesse tudo em silêncio e que nada perturbasse o sono de papai, tão cansado, coitado, que trabalhava tanto para que não nos faltasse nada.

Mas dona Dora viu papai tomar o ônibos e veio direto lá para casa.  Lógico, ele foi trabalhar, disse mamãe, mas a vizinha retrucou maliciosamente que o hospital ficava para o outro lado.  Papai teria tomado o ônibus ao contrário.  Bom, tenho que investigar, disse mamãe, nervosa, enquanto a outra saboreava uma espécie de triunfo incompreensível.  Todos são iguais, não se preocupe, disse quando mamãe lhe abriu a porta, dissimulando um pouco sua perturbação.  E aí começou o problema, porque mamãe ficou zangada e me mandou dormir, me tratou mal.  Não tinha se dado conta de que eu estava ali, escutando, antenada, entendendo sem entender que algo estranho, inaceitável, tinha acontecido, e talvez para sempre.

A noite seguinte me pediu que a acompanhasse ao hospital onde papai trabalhava.  No ônibus,  mamãe ia calada e pensativa, e eu ao seu lado sem saber muito bem para quê, mas decidida, sem sabê-lo, a apoiá-la e me colocar incondicionalmente ao seu lado.  Caminhamos muito, subimos e descemos escadas, falamos com pessoas, percorremos todos os pavilhões.  Mamãe aguardava um senhor que parecia muito importante e que nos recebeu numa espécie de audiência.  Finalmente, soubemos a verdade brutal.  Papai não trabalhava ali.  Não havia nenhum empregado ou padioleiro com aquele nome ali.  Mamãe chorou e quase desmaiou.  Aquele senhor importante fez com que um médico a atendesse e finalmente nos mandou para casa de ambulância, por pura amabilidade, dizendo que lamentava o fato.  

Foi assim que aconteceu tudo.  E ainda piorou quando ele se viu descoberto depois de tanto tempo e confessou, porque não tinha mais como negar.  Papai ia todas as noites, de segunda a sexta, bailar tango. Aonde, isso eu nunca soube direito, mas ele se transformara num dançarino de tango como antes, quando ainda era solteiro.  Fazia-o porque sentia muita falta, porque adorava dançar e nada mais.  Confessava-o sombriamente, taciturno, enquanto mamãe lhe gritava que com certeza ele a havia traído com alguma daquelas mulheres; que nunca mais a tocasse, que tinha sido uma estúpida e assim continuavam, enquanto ele lhe jurava que não, mas com uma espécie de tristeza, como se quisesse fazê-la compreender alguma coisa.

Mamãe sentiu-se a vítima traída.  Eu a compreendi e me zanguei com ele para sempre.  Nunca mais quis ser sua amiga ou confidente, nunca mais nossa casa foi a mesma.  Papai cumpriu sua promessa de comportar-se e não sair.  Chegou a convidar mamãe, mas ela estava zangada demais e não aceitou.

Ele decidiu ficar em casa como mandavam os costumes, trabalhou, ganhou dinheiro e cuidou de sua família.  Mas seu olhar se apagou e eu senti saudade daquele pai bem humorado, que chegava em casa assobiando.  Aquele homem que, quando pequena, me levantava girando pelo ar quando lhe pedia “me faz um aviãozinho!”.

Agora sou adulta e, por mistérios da vida e do desejo, também aprendi a bailar tango.  Faz pouco tempo me encontrei pela primeira vez numa pista de dança, cheia de emoção e maravilhada, sentindo o prodígio de bailar um tango, deixando meu corpo se inundar daquele gozo único, rítmico e passional.  Então, pela primeira vez depois de tantos anos, compreendi meu pai.

Claro que agora ele não está mais aqui para que o diga.  Sem dúvida, cada vez que danço e acompanho feliz um parceiro, cada vez que me encontro numa ronda de dançarinos como quando era pequena no carrossel onde ele me levava, sinto que ele está me vendo.  De alguma forma me olha, sorri e se alegra.  Eu bailo feliz, sabendo que ele me entende e que compartilhamos de novo essa felicidade como quando ele chegava em casa assobiando e eu lhe pedia “me faz um aviãozinho!”. 

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