Autora: SONIA ABADI Tradução: Raquel Mellman
Memória e esquecimento são duas formas de registro que regem as relações na milonga.
Ser esquecido dói, ser lembrado pode ser pior.
Na milonga a memória é seletiva. Alguém dançou com ela domingo no Canning, terça no El Beso, quinta no Niño Bien. Encontram-se sábado em outro lugar qualquer, e ele não só não dança com ela como também nem sequer a cumprimenta. Parece que ir à milonga com parceiro(a) estável causa estragos na memória.
Outros dançaram a noite toda e na hora de partir ele propõe acompanhá-la. Ela não aceita, não se sabe se é apenas porque não quer ou para acrescentar suspense à conquista. Ele não lhe concede o benefício da dúvida e se considera rechaçado. De outra vez, quando a encontra, faz cara de que não se lembra. O orgulho ferido também afeta a memória de um modo contraditório: ignora-se o que ofende, mas a ofensa fica marcada a fogo.
Ela dançava com ele seguidamente e também com vários outros. Ninguém sabe nada além disso, apesar de que muitos pressintam um romance. Agora dança com todos menos com ele. Por que se restavam dúvidas, romance houve, e isso se confirma no momento em que acaba mal.
Aquele outro que se senta sempre sozinho dançava com uma moça um par de tandas a cada noite. Mas hoje puseram na mesa dela uma magrinha desconhecida e ambas se põem a tagarelar animadamente. O cavalheiro em questão maldiz a coincidência de terem colocado na mesma mesa sua próxima vítima e seu último caso, enquanto tenta desesperadamente passar desapercebido, tremendo ante a possibilidade de um confronto.
Igual àquela que vê sentados à mesma mesa dois caras com quem saía ao mesmo tempo no mês passado. Encurralada, não lhe resta outra saída a não ser ignorá-los.
Ela dança muito bem e é cobiçada pelos que nunca viu antes. Naquela noite a vemos dançando entre os braços de um daqueles que suas amigas sabem perfeitamente que não é do seu agrado. Surpresas, as moças observam-na sofrendo na pista com cara resignada. O mistério se esclarece quando descobrem que, na outra ponta do salão seu ex-noivo chega com a mais recente conquista. Todos sabem que nesses casos vale tudo, menos expor-se à humilhação de ser vista sentada.
Por sorte, algumas ofensas e traições acabam sendo esquecidas. Paradoxos do machismo, para eles é mais fácil reconciliar-se com o cara que lhe roubou a namorada do que com a ingrata que o abandonou.
Elas, ao contrário, são capazes de arrancar-se os olhos por um homem, mas uma vez passada a história, tornam-se cúmplices para rir-se dele e comentar seus defeitos.
O esquecimento é um recurso de sobrevivência, mesmo que às vezes deixe feridas profundas nos outros. Reclamam os que se esquecem das caras, dos nomes, das coisas vividas juntos.
Mas o excesso de memória pode ser uma arma mortífera que envenena a quem padece e condena o lembrado ao rancor eterno.
Memória caminha junto com reconhecimento, lembrança e saudade, mas também com ressentimento e vingança.
Esquecimento anda de mãos dadas com indiferença, às vezes ingratidão, mas também com perdão.
Mesmo tendo que reconhecer que para o perdão também contribuem o álcool, a penumbra e, com o tempo, a arteriosclerose.
Fonte: Revista EL TANGAUTA, no. 90 - mar/2002
(com autorização da autora para reprodução no Boletim Rio Tango)