Autora:
Graciela
H. Lopez
Eram
dias muito felizes aqueles, quando íamos àquela milonga vespertina.
Brigávamos pelas mesas, todas queríamos ficar na frente, nos lugares
mais vistos para sermos tiradas.
E como nos tiravam!
Qualquer
transeunte distraído que escutava da rua um pouco da música e subia essa
bendita escada, ficava pasmo com o espetáculo.
E
claro que aproveitávamos cada minuto.
Chegávamos de pasta, roupas despojadas, fichário, livros ou mala de
vendedora. Vínhamos
do trabalho e, depois dessa pausa, muitas voltaríamos a ele.
Mas que recreio maravilhoso!
Dançar duas, três horinhas assim, cedo.
Encontrar
aquele tipo tão bem apessoado, sentado ali no canto, ao lado da coluna.
Verificar que ali estava o poeta, que dançava tão bem, sentado ao lado
dos espelhos e que a mesa de Salme e seus dois amigos já estava ocupada, com
eles bebendo o de sempre.
Uma
vez reconhecidos os fatos e comprovado que todos estavam mais ou menos nos seus
lugares, eu trocava os sapatos mais depressa que correndo, ao mesmo tempo que
olhava os que já dançavam e começava a escolher com quem fazê-lo, enquanto
brigava com a fivela do sapato.
Se naquele momento tocavam tangos de Fresedo, parecia que perdia o melhor
da tarde. Ou se
tocavam os de Di Sarli, Canaro ou D’Arienzo, eu sentia o mesmo.
Enfim, a princípio, nem ia ao banheiro, não queria perder nada, como as
crianças que são capazes de fazer xixi nas calças para não parar de brincar.
Nessa
época de furor, dançava com todos e com cada um dos dançarinos que me
convidavam. Fazia-o
com uma alegria e um frenesi desconhecidos até então.
Só
muito tempo depois é que comecei a selecionar e escolher apenas aqueles com
quem podia dançar melhor. Era
toda uma aprendizagem e também uma diversão incomparável.
Claro
– como não ter bom humor e um sorriso armado o tempo todo?
Se o que encontrava desde o começo eram elogios, cumprimentos, convites
e galanteios: - Como vai, princesa, quer dançar comigo?, disse-me um dia Cesar
e riu muito quando lhe respondi: - E pensar que depois chego em casa e as crianças
me dizem “Oi, coroa”. Como não se sentir princesa por um momento?
E
o bem que fazia! Vestíamos
nossa melhor roupa e nossa melhor disposição, para honrar esse recinto antigo,
senhorial, um pouco decaído, mas que sem dúvida nos alojava tão
majestosamente.
O
banheiro do lugar era muito espaçoso e tinha uma parte dianteira que funcionava
como toucador. Ali,
por incrível que pareça, esperava por nós outra festa.
Isso mesmo, uma festa especial dentro da outra grande, geral.
É
que naquela época, cuidava do banheiro do lugar uma mulher bela e sorridente,
que pelos descaminhos que nosso país tomou, ficou desempregada.
Então ficava ali naquelas tardes, apenas pelas pequenas gorjetas que
recebia
Nunca
vi ninguém fazer um trabalho tão desagradável com a dignidade, a graça e o
humor que Margarita lhe imprimia.
Estava ali, contente, sempre disposta a ajudar cada mulher que precisava
abotoar a blusa, pregar um botão ou parar o fio corrido de uma meia.
Ela se divertia com as histórias que lhe contavam mulheres de todas as
idades, vindas do salão.
Às
vezes usávamos o lugar como refúgio ou esconderijo, mortas de tanto rir,
quando não queríamos dançar com um fulano que se dirigia à nossa mesa para
nos tirar. Então pegávamos
a bolsa três segundos antes que o dito cujo chegasse e nos metíamos no
banheiro, de conversa com Margarita.
Aí se armava um agitado debate entre as presentes.
Não faltava nunca uma experiente milongueira que dizia: “Que se dane!
Assim o cara vai aprender que não tem que ir à mesa, precisa cabecear
de longe”. Tampouco
faltava outra que o defendia e dizia que os costumes mudaram.
Ela
se deliciava com a situação e abria a porta para espiar.
“Pronto, já pode sair, ‘tá dançando com outra!”, dizia, enquanto
no meio da confusão, nos tachava de covardes e traidoras.
Com
o tempo, chegou a montar sua micro-empresa privada, levando meias, perfumes,
pastilhas, linha, agulha, algodão, desodorante, esmalte de unhas, cosméticos e
tudo aquilo que qualquer mulher pudesse necessitar naquelas circunstâncias. -
Vocês vêm para a escola sem o material – brincava.
No
verão, fazia um calor tremendo dentro do salão, e muitas de nós, fanáticas,
dançávamos assim mesmo, suando, comentando que “assim não se pode dançar”,
enquanto continuávamos a fazê-lo.
Por isso, muitas de nós levávamos uma muda de roupa para trocar em caso
de estar suadas demais.
Era
um espetáculo extra e que jamais voltei a ver em nenhuma parte, encontrar
Margarita secando nossas roupas “sobressalentes” diante de seu ventilador.
Jamais
vi nela um só gesto de inveja ou raiva.
Lembrava-se de nossos nomes e as piadas de cada uma.
Pertencia a essa espécie de mulheres de fibra que enfrentam os
dissabores sem queixas, e têm uma solidariedade natural com os demais.
Às vezes aparecia para nos ver dançar; soube depois que ela praticava
até o final da tarde, quando seu trabalho já estava quase terminado e havia
pouca gente.
Felizmente
para ela, essa situação durou pouco tempo.
Conseguiu um bom trabalho numa empresa, e dessa forma soubemos do alto nível
de estudos que tinha. Um
gênio, a Margarita. Não
a vi mais, mas fiquei sabendo que está bem e contente.
Quando
tenho dias cheios de contratempos e me sinto infeliz e sem sorte, resolvo ir dançar
um pouquinho nesse salão. Depois
de uns bons tangos e valses bem dançados, vou ao toucador.
Enquanto retoco a maquilagem, descubro que estou sorrindo, evaporou-se o
mau humor e penso que apesar de tudo, sou muito sortuda.
É
que nesse lugar, o gênio de Margarita revoluteia por todos os cantos.
Fonte: Revista B.A. TANGO, junho 2001, com autorização para reprodução no Boletim Rio Tango