Autora:  SONIA ABADI                                                     Tradução:  Raquel Mellman 

        

A milonga cozinha em fogo brando...

É cedo ainda, está fresco, a roupa ainda impecável, as mulheres com a maquilagem e o cabelo perfeitos. 
        Duas horas depois, a milonga entra em ebulição, na temperatura e no entusiasmo. A essas alturas, todos já chegaram, mas continua entrando gente e a pista está tão cheia que quase não se pode dançar. Os gulosos não admitem perder uma tanda. Conhecidos se cumprimentam de longe, de olho ao seu redor, sem perder um detalhe das guloseimas expostas. A mulher está imóvel, como isca apetitosa à espera de sua presa. 
        Enquanto isso, cozinham-se outras coisas. Histórias doces ou picantes, às vezes amargas... 
        Um sujeito maduro, dos que já passaram por tudo na vida, dança com as menos cotadas só para se aquecer, para aparecer e ser cobiçado por aquela que lhe interessa, reservá-la para as últimas tandas e saboreá-la pouco antes do final da milonga. 
        Ele sabe que não precisa ir com muita sede ao pote. Se começasse muito cedo, teria que dançar com ela a noite toda ou deixá-la à mercê dos outros gaviões, deixando que se esvaia a magia da sedução. Os impacientes que se adiantam, no final acabam chupando o dedo. 
        Da mesma forma, algumas apressadinhas queimam seu filme. Aquela gulosa não pode esperar e tira de cara o melhor dançarino. Essa vai ter que manter o interesse dele dançando várias tandas e mantendo-se em evidência.  Depois dele ninguém mais a tira. Aí, ele a deixa na dieta, dançando com outras, enquanto a guarda, quentinha, para o final. 
        Outras mais sensatas se divertem com aqueles despretenciosos que as conservam acesas sem perceber que elas o fazem para que outro lhes dê um prazer maior. 
        Porém mais cedo ou mais tarde todos terão sua chance. A vingança é um prato que se come frio. Aquela para a qual couberam as sobras, amanhã comerá o prato principal. Aquele que hoje foi aperitivo, amanhã será a ameixa do manjar. 
        No final da milonga, fica o fundo da panela, o molho, a essência. Feita de olhares que se perderam e não alcançaram seu destino, de suores e perfumes misturados, de promessas, de passos perdidos, de sonhos desfeitos.  Restam poucos, em geral bons dançarinos ou algum solitário que reluta em voltar para casa. As mulheres, em duas ou três, amigas entre si. 
        Agora é a hora para degustar aquele ou aquela que se tem vontade de tirar há muito tempo e sempre se ficou com água na boca. Dança-se livremente, sem amarras, um casal brinca com outro, a pista está desimpedida, o clima é de confiança, de companheirismo. 

Coisas impensáveis duas horas antes, agora podem acontecer.   

 Fonte:  EL TANGAUTA,  janeiro 2001, com autorização para reprodução no Boletim Rio Tango

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