Graciela H. López                         Tradução:  Raquel M.

Como alterar um acordo que durara tantos anos?  Ela não concordava, mas o pacto ia se estabelecendo devagar, semana após outra, um mês e logo o seguinte.  Talvez por não ter tido coragem para protestar,  por medo de que ele se zangasse, de que ele não a quisesse mais.  Por adiar tudo, continuar mansa, tranquila, boa demais.  Agora chorava, porque uma vez mais, ele se ajeitava diante do espelho para sair.  Fazia-o apressadamente, entediado.

- E agora você deu de chorar?  Não enche, Katy!  Você sabe que é o único prazer que ainda me dou.  Não jogo, não bebo, trago a grana para casa.  No sábado te levo para dançar.  Ora, só porque vou jantar com a galera você não pode ficar assim!

A galera.  Katy sabia há tempos que aquilo era mentira.  Era certo que o vinham buscar.  Mas eles iam juntos à milonga.  Bastava chegar na varanda para vê-lo sair com os outros dois, rindo, muito à vontade e pronto para a farra, como se abrisse uma jaula e subitamente ganhasse a liberdade.  Como se isso não fosse o bastante para intuir o que acontecia, não lhe faltou o comentário daquela amiga discreta sobre onde e quando o haviam visto dançando.  Fazia tempo que Katy o sabia, porém o guardava como um segredo que acabou por envergonhá-la.  Era o cúmulo, mas não tinha coragem para dizer-lhe que sabia da verdade.

Ele se foi, beijando-a demoradamente para consolá-la, porém com o corpo agitado e ansioso por partir, prometendo-lhe mundos e fundos para o final da semana mas que ela não chorasse mais e o deixasse ir tranquilo como sempre.  - Você sabe que se me tira isso, eu morro – tinha-lhe dito, já na porta.  Sua voz tinha tom de súplica.

Assim que ela ficou só, chorou, chorou com mais força que nunca, atirada na cama de bruços, do mesmo jeito de quando era criança e a mandavam de castigo para seu quarto.  Fez birra igual, num misto de desespero e impotência.  Estava confusa, parecia-lhe que havia feito algo errado, mas não sabia exatamente o quê.  Estava zangada com ele, mas ao mesmo tempo comoveu-se com seu modo de sair, pedindo, implorando.

Levantou-se ainda fungando e foi olhar-se no espelho.  O que viu já não era igual à sua infância.  Viu apavorada os pés-de-galinha cada vez mais profundos, os olhos injetados e tristes.  Estou um nojo, e para completar, estou com as unhas quebradas e além disso este cabelo está uma porcaria, uma palha, horrível.  Assim se lamentava Katy, sentindo-se uma vítima inocente de algum cataclismo do tempo e das circunstâncias.

Estava nesse devaneio quando escutou aqueles risos abafados.  Sim, pareciam risadinhas..  Deteve-se para escutar melhor, mas apenas lhe chegaram os ruídos da rua.  Entretanto, naquele momento voltou a perceber algo similar.  Revistou a casa, cada canto.  Acendeu todas as luzes, mas não encontrou nada.

Ao retornar ao seu quarto tornou a escutar.  Era uma conversa distante, como um rádio no volume mais baixo.  Que loucura!  É como se estivesse dentro do armário!  Seu estado de ânimo mudou do choro para outro, de estupor, surpresa, incredulidade.  Abriu com cautela, sem ruído.  Novamente uma voz abafada e agora sem dúvidas, vinha de dentro do seu próprio armário.  A curiosidade foi mais forte do que o medo.  Aproximou-se timidamente, cuidadosa.  E, claro, apenas ouviu um grande silêncio.  Será que, além de feia, estarei louca?

- Quem está aí? – gritou, sabendo que estava além de toda a lógica.  Voltou a escutar e seu coração batia forte.  Subitamente, o quarto adquiriu nova luz, surgiu uma promessa de algo em alguma parte.  Isso, havia uma absurda promesssa de algo, uma tentação indefinível e o pólo de atração era o armário e seus murmúrios.

Apesar de parecer um disparate, puxou as roupas que estavam mais à vista.  Fazia tempo que não arrumava, estava tudo amontoado.  Tirou cobertores, casacões, calças, blusas.  Olhou para as saias e pensou como eram cafonas, antigas.  Procurou e remexeu, jogou um monte de coisas sobre a cama, passou por cima de camisolas e combinações velhas que nunca se animava a jogar fora.  Jogou-se dentro, com uma fúria desconhecida dela mesma.

Nada.  Silêncio.  Estava envergonhada.  Naturalmente, tudo era mentira,  tudo produto de sua imaginação desmedida.  O certo é que a ela nunca acontecia nada realmente “de verdade”.  Está bem, estou sempre imaginando que chega algo diferente, pensou decepcionada, enquanto experimentava uma belíssima boina negra da qual nem se lembrava mais que tinha.  Que linda!  Encontrou uma minissaia que há séculos não vestia.  Ela combina com meias pretas, claro, e com... cadê aquela blusa decotada vermelha que usei no casamento de Titi?  Olha ela aí!  Vestiu-se, divertida.  Olhou-se no espelho grande, fazendo caras e bocas de modelo.  Ficou pasma.  Não estou nada mal.  Que prazer!  Há quanto tempo!

- Puxa, até que enfim!  Resolveu sair, bonitona? - Do espelho, sua própria imagem, agora sensual e sorridente lhe falava.  Reconheceu a voz do armário.  – Mas isso ainda é pouco – respondeu-lhe a do espelho – preciso de pintura.  Agora vais ver!

Buscou sua maquilagem e se entreteve longamente olhando-se, pintando-se com volúpia, com prazer, quase presunçosa.  – Maravilhoso, uma obra perfeita.  E agora, que faremos? – A do espelho a incitava, provocava-a enquanto ela se olhava fascinada.

- Agora?  Agora sairemos! E não me olhe desconfiada.  Acho que sei onde ir.  Desta vez é de verdade!

Num rasgo de atrevimento e de inspirada decisão, Katy pegou sua bolsa, cumprimentou sua imagem com uma graciosa reverência e saiu.

 (Conto publicado na revista B.A.Tango, número 121 - abril 2001)